Prólogo
a última
gota de ar
O coração é uma bomba. Uma bomba responsável pela livre circulação do sangue. O sangue alimenta e comunica. Liga todas as células a todas as células. Leva a atmosfera pra dentro do corpo. Leva comida pra todos os membros do corpo.
O coração é uma bomba que, quando saudável, distribui o sangue de maneira igual para todo o corpo através dos vasos.
Acredita-se que além das duas circulações comumente conhecidas
(a pequena, que leva e traz o sangue para o pulmão; e a grande, que leva e traz o sangue para o corpo todo)
existe uma terceira via. Uma circulação que liga o dentro e o fora. E portanto nos liga também.
Circulação etérica, é disso que se trata.
Uma circulação de sangue etérico que faz com que sejamos penetradas por tecido vivo do outro.
Uma ponte de sangue.
O corpo do outro dentro e meu corpo circulando nas veias do outro. Essa ponte sanguínea é real. É nossa alquimia.
(O cérebro humano é composto por 75% de água.
A água é o solvente mais usado no mundo.
Menos de 5% dos oceanos já foi explorado.
A água do mar não é adequada para o consumo.
A maior parte do oxigênio da terra é produzida pelas algas marinhas.
Todos os dias 6 bilhões de quilos de lixo são jogados nos oceanos.)
Portanto, obstruções e enrijecimentos do sistema circulatório criam necroses, atrofiamentos, escassez, entupimento, morte. O sangue chega pra alguns e pra outros não. O alcance do coração fica curto. O coração enfraquece.
Mas um coração quase morto não impede a mente de crescer e criar corpos gigantes. Corpos sem sangue. Próteses.
E onde o coração não está tudo pode acontecer.

Então, como não destruir? Como agir sobre o que não se conhece? Como agir sobre quem não se ama? Por que não destruir o que não me toca?
Toda crosta terrestre estava gelada. Dura. Morta. Nenhuma forma de energia térmica chegava à superfície. Nem o calor do sol, nem o calor do núcleo da terra. E combinamos que se sobrevivessemos às últimas bombas mergulharíamos juntas até o fundo, até o centro.
Em missão de desobstrução.
(No ponto mais fundo do oceano a pressão da água equivale ao peso de 50 aviões jumbo em cima de uma pessoa.
Estima-se que 80% das formas de vida dos oceanos são desconhecidas.
Eu conheci um homem que já jogou mais de 4 mil mensagens em garrafas no oceano e recebeu mais de 3 mil respostas.
Os filhotes de tubarão-tigre brigam entre si na barriga da mãe até sobrar apenas um e só ele nasce
10% das espécies de peixe trocam de sexo pelo menos uma vez na vida.
As ostras mudam de sexo dependendo do que é vantajoso pro acasalamento.
Os golfinhos dão nome uns aos outros.)
O plano era levar até o núcleo da terra o último suspiro.
Na beira do abismo mais profundo, juntas como o combinado.
(O coração da baleia azul é do tamanho de um fusca e poderíamos caminhar tranquilamente pelas suas artérias.
É o fluido que nos faz pensar…
Nossa última gota de ar.)
Eu não conseguia compreender o todo do meu corpo estendido no mundo. Achei que minhas mãos eram apenas mãos. Minhas. São pontes? Pra onde?
(É o fluido que nos faz pensar. É o fluido que nos viver e amar.)
Juntas. Mãos dadas. Mãos estendidas. O toque de uma mão viva. O sangue que nos une.

mergulho
espuma civilizatória
a herança da superfície
Quando mergulhamos,
quando tocamos a superfície da água,
o que nos esperava não era a paz.
Na primeira camada do oceano
a espuma da civilização
ainda berrava
suas heranças.

Esse ser pelado de pele frágil, esse ser de visão curta, escuta restrita, esse bicho lento e inábil que somos nós, tem corpos invisíveis além do que se vê.
Além desse corpo, cabeça, tronco e membros, essa criatura se estende, cresce muito ou diminui muito, como quiser, através do pensamento, da mente, do corpo imenso da mente.
Essa mente cria imensos braços, imensas línguas e uma visão aguçadíssima que vê a superfície das estrelas e a divisão dos núcleos dos átomos e unhas de muitas espécies e peles, espuma, espuma de prótese, espuma, espuma de corpo,
Minha unha é faca, é bala, é garfo, é arado, minha boca é microfone, telefone, meu ouvido estetoscópio, gravador, meus pés são carros, motores, cascos, cavalos, aviões, celulares, minhas mãos são colher, guindaste, travesseiro.
O meu soco é bomba destruidora do mundo.
Duro.
Duro. É duro tudo dentro de mim, o sangue nas minhas veias está endurecido não te vejo mais, não sou capaz de ver a água, tudo é sólido ao meu redor. É duro dentro de mim, eu trouxe o mundo pra dentro de mim e tudo não coube e se apertou e endureceu. Nada mais sai, nada mais entra. Estou parada, estou cansada, estou cheia, não consigo mais entender coisa alguma, estou cheia, estou farta, estou infartada. Estou explodindo de palavras soltas, ideias partidas, não conheço mais nada que não seja duro, não sou mais solúvel, não respiro mais

mergulho
Os porões da civilização
mentiras sobre nós
disfarce, como suportar isso se não suportamos fardo menor? Degradadas por mentiras, mentiras sobre nós nosso sangue mágico, nossa inteligência, nosso alcance, nossa força, a que não existe sozinha, a que vive sem prazer porque não sabe sentir. Ácido no clítoris. Ácido no clitóris. Vamos jogar ácido no clítoris dessa mulher que se excita que é puro prazer que vai acabar com a regulação do mundo rentável, que vai ser mãe da força de trabalho e produzir corpos mas não é dona de nada de nada não é nada ou é santa que não sente nada ou é puta burro de carga que não é nada portanto vai fazer tudo, vai ser nada, vai sustentar esse porões, vai limpar o chão das salas, ou pagar para a quase sempre negra limpar mas, sempre coisa de mulher de serviço gratuito porque branca dona ou mal pago porque negra na casa da branca brasil.
canções
- A mulher não pode ser muito intelectual
Complexada
- Fazer o coração do homem bater é o destino e a glória da mulher
Vem cá mulher deixa de manha minha cobra
A mulher é um buraco que clama
Vem cá mulher deixa de manha a mulher é um buraco que clama
- O estupro é um programa político preciso
Esqueleto do capitalismo
É a representação crua e direta
do exercício do poder.

mergulho
solidão
o toque de uma mão viva
- Ah esse medo da morte essa circulação fechada, essa pequena circulação que não se alarga… meus amigos minha família meus poucos irmãos. Sempre achei que existisse uma maneira correta de estar no mundo, que ele fosse pronto, eu tinha até um caderninho com uma lista de como eu deveria ser. Mas como entrar nesta reta se deitada na cama do quarto da casa da minha avó eu via umas bolas enormes e uma pequena porta ao fundo, o meu pai no quintal de uma casa onde ele nunca foi, minha avó de coque, ela que nunca teve cabelos grandes? O melro fugiu pelo buraco da persiana que eu deixei aberta, foi parar na amendoeira, fecha, fecha, fecha. Os meus …meus iguais… Uma muralha enorme foi construída, que cheiro de grama cortada, essa casa da família, minha avó, minhas irmãs, tia Dolores e a lista das qualidades atributos virtudes de alguém legal. De alguém legalmente instituído no mundo. Alguém que merece muito viver e talvez até ganhar alguma admiração de alguém importante … algo… Falar era permitido mas eu, eu, eu, não consegui. Bloqueei, entupi. As coisas não bateram. O certo de dentro não se parecia com nada do esperado no mundo de fora, escola família, cidade, classes sociais? Destino? Qual a distância pra chegar na superfície de novo? A cabeça pendeu para o lado, a vértebra girou, a coluna travou, a comida caiu do garfo. Tem um monstro querendo sair, uma incrível Hulk, uma King Kong. Coloca um aparelho, um aparato, tampa esse buraco. É epilepsia não convulsiva? sopro no coração? Muito magrinha, muito magrinha. Mas melhor assim, mais certo ser magra de morrer que gorda. Isso aqui é bonito até com chuva. Troca de lugar comigo? Só pra alguem me dizer se é normal o que eu tô sentindo nessa torre. Uma vez uma pessoa à beira da morte me disse que não conseguia juntar as partes do anel. Que medo que eu eu eu tenho da morte. Eu, eu gosto de misturar estampados, sou grande, dá espaço, combina com o embrulho dos pensamentos. Fecha, fecha. Liquidificador estético, vitamina de banana, macarrão com queijo embaixo. Meu avô tinha conta no pipoqueiro, andava pela calçada com as mãos para trás. Lembro mais das coisas da infância do que o que aconteceu ontem por isso que eu gosto dos sonhos, auto reflexão, todo tempo do mundo para a auto reflexão. A auto reflexão. Teve um infarto, o telefone tocou, eu ia esperar dar 10 horas. Mas não foi do infarto que ele morreu minha avó preparava um mingau. Mas quais são as novidades?
Pique, tem que ter pique. Trabalhou em banco mas o que importa é o teatro. Mas que teatro se o teatro acabou? As portas se fecharam os textos já não servem mais. O que ficou foi a nossa companhia, a minha companhia e a sua. Eu, eu sou apegada a paixões tristes. Eu, eu sou assim. A vida tá passando, vai ser feliz. Onde, onde como eu poderia me auto ajudar? Manoel olha uma gaivota morta. Ele tirou sua roupa? Que roupa? Fica bem com qualquer roupa. Minha avó era costureira.O que aconteceu? Não aconteceu nada. Só o espírito que deu um nó. Te espero às 10 na garagem. O telefone não toca. O corredor é enorme, a escada é enorme, a muralha é enorme, é o certo? É assim mesmo que a vida deveria acontecer? Estou tendo uma vida útil? Estou cumprindo minha missão? O ângulo de 92 graus me tira da noção do certo e errado…
- uma mão humana…
uma mão humana…
uma mão humana…
uma mão humana me salvaria
o toque de uma mão viva
o sangue que nos une
- Canção para o último peixe
Não posso me mover
Mais nesse mundo
Sem você não existe lugar
Ou pouso seguro
Nem o fundo do mar
Nem o fundo do céu
São meu chão.
Se vc nao existe,
Meu sangue circula em vão.
Volta! Vem viver comigo outra vida!
Te prometo não mais dor ou despedida.
Te prometo outro mundo, nossa paz.
Volta agora! Tenho pouco ar,
Já estou morta.
Alimenta essa boca, essa alma.
Me abraça e me envolve com seu coração.
- Abre…Abre… Abre… Agora… Eu tô pronta… A gente podia… Você tá sozinha aí
Eu tô sozinha aqui… O tempo tá passando…Abre…Abre…Abre…
mergulho.
dilaceramento

Desaparece!
morre!
morre!
vira outra coisa!
constrói outra coisa!
destrói essa cabeça pequena!
isso já não é mais possível!
inventa outra coisa!
constrói uma cabeça coração!
sai daí !
fatia e come essa merda!
morre!
constrói uma cabeça coração!
muda!
corta!
mata!
morre! morre! morre!
isso já não é mais possível!
Constrói uma cabeça coração!

mergulho.
novas formas
construa uma cabeça-coração
isso é uma couraça? Trombones na cúpula. A ponta da pirâmide no meio da cúpula.
Você é feito de lona? Eu não sei o que pensar dessas bolas que desabrocham, dessas cavernas…
Tudo isso ainda é você? Você é feito de duas porquinhas e seus filhotes? Um cano desembocando em praças, tapetinhos, escovinhas e tobogans. Galhos, raízes flutuantes. Eu não consigo entender esses sentimentos, essa flor nasceu com você? Eu consigo tirar essa pedra do lugar? Você é um eco que ressoa…
Não consigo, não posso dizer o que sinto. Por que não tem boca em você? Eu não poderia falar com você? Não posso beijar ou fazer sexo com você? Será que quero comer parte de você?
Será que te amar seria passear com você, estar ao seu lado, em frente, unir o mais mole de mim com o mais mole de você?
Posso responder mais por você que por mim.
Me diga o que estou sentindo, me diga o que penso de você. Onde estive? Do que eu gosto? Sentir o gosto é gostar? Posso gostar de você? Por que estou me movendo? O que me move?
canção
deus
força liquida
e maleável lavadora
escorredora mãe
contornadora
suave e esmagadora presença
misturadora, consoladora
sinal de tudo ir para onde deve ir
sábia corredora
contínua, indivisível
boa, boa, boa

mergulho
cavar, cavar, cavar
No fundo do mar , a terra de novo
cavar, cavar, cavar
até o centro
até o fundo
cavar a terra molhada
e levar para o fogo
nosso último sopro
canção
Para essa última gota (de ar)
vou me declarar e depois esquecer
que sou humana
E dissolver essa carne
em cubos de gelo ao sol do amor
Meu corpo no fogo
Meus pensamentos
caudaloso e sereno rio

cavam
centro coração
o sangue que nos une
tudo , todos
tudo, tudo
cada coisa, cada ser ou coisa alimento para cada ser
todo ser
tudo alimentado
tudo
cada ser
cada coisa
ponte
pontes para tudo
cada ser ou coisa
é ponte para tudo.
FIM

